Não há nada pior do que um regime totalitário isolado. Não há uma fronteira terrestre com um vizinho para se espelhar, seja para ver coisas boas ou não. É um mundo de ficção onde você atesta as mentiras em público, depois, sob quatro paredes, um pouco de rum, a TV ligada e muda, você pode entrar no mundo das fantasias do pensamento, da criatividade, daquilo que sua memória guarda de resquício do mundo ideal.

Veja nosso exemplo, em algumas horas estamos na fronteira com a Argentina ou Paraguai, compramos o que eles tem de mais barato, seja vinhos ou eletrônicos, e em meia hora sabemos como está a economia deles. Sabemos se tem inflação, conversamos com eles, temos um parâmetro. Eles fazem o mesmo, aliás muitos “hermanos” argentinos estão neste momento imigrando para o Brasil.

Sentei várias vezes com eles (nossos irmãos da ilha caribenha), com todo tipo de gente, de pescadores a professores. Todos perderam a ambição, característica comum do ser humano desde que o mundo é mundo. Até o amor perdeu o sentido. Como amar sob uma cartilha de costumes forçados, desde a escola, a propaganda na TV, tudo sob a regra rígida de um Partido que não aceita o estágio natural da evolução do ser humano. Os aspectos comuns, naturais da vida, a ética, os valores concebidos pelas tradições. Tudo isto foi apagado e reescrito.

As pessoas saem para trabalhar com um peso de 100 kilos amarrado na cintura. O cérebro manda contínuas mensagens para voltar para casa, para se atirar no mar e nadar até não poder mais. Logo ele pensa que tem filhos, retoma o raciocínio e arrasta o peso moral até a sua patética vida de labor para o Estado.

Inconscientemente ele adquiri alguns costumes imorais, precisa comprar produtos no mercado negro, uma simples pasta de dente ou um pequeno pedaço de queijo. As mulheres vão atrás de absorvente, de sabonete. Aprendem a burlar certas regras com extrema facilidade. Até o Estado já aceita, mas finge que não pode. Depois da cena de teatro, o Partido prepara a cartilha acusatória. É de extrema importância arrumar um culpado, chegando a extremos como quando falta energia elétrica, culpar a consciência do povo por não pensar em energia limpa. A manchete do principal jornal do país fala que o presidente quer que o povo pense no planeta. No mesmo instante 8 milhões de pessoas largam um “no joda” no mundo dos pensamentos.

Ele adoece, vai para o hospital cheio de capital humano, não faltam profissionais de saúde, mas cai na real quando precisa iniciar o tratamento. Não há exames, não há remédios, não há material básico de atendimento. No posto de saúde não há mais esparadrapo há 10 anos. A máquina de raio-X está quebrada faz dois anos. Então ele lembra que a vizinha recebeu medicamentos de uma parente que vive nos EUA, vai até lá e resolve temporariamente o seu problema. Consegue ainda alguns antiinflamatórios e volta para o trabalho, entrega o atestado de uma semana, depois volta para casa. No caminho um amigo que trabalha numa destilaria do Estado lhe dá uma garrafa de rum furtada.

Na cabeça dele, isto já não é mais um delito, afinal, se todo mundo trabalha para o Estado, isto seria uma espécie de bônus salarial por seus incansáveis trabalhos. 

No fim do ano, todo mundo mata o seu porquinho. Quase toda família. O processo é longo e requer habilidade. Tudo começa com a obscura aquisição do porquinho no início do ano. Cada família dá o seu jeito. Quando eu vi o porquinho em fevereiro, na casa de meu amigo, foi de surpresa. Acordei lá pelas 6h00 com o rosnar daquele ser. Olhei pela janela e ele estava ali, comendo não sei o que!

Eu não perguntei nada ao meu amigo, preferi descobrir por conta própria, tarefa fácil, pois no decorrer da semana me deparei com vários, em várias casas. Depois de muito rum, charuto furtado do estado de bem estar social e algumas conversas, me contaram o procedimento inteiro que, segundo eles, terminaria no dia de “San Nicolau”, o natal, com a família inteira envolvida no assado, cada um revezando algumas horas até a santa ceia. 

A diferença é que ninguém dá a mínima para presentes, afinal comprar presentes com que? Mas foi neste dia que senti o Natal fora de meus país pela primeira vez, um pouco diferente, mas era o Natal. Confesso que fiquei com um pouco de esperança ao ver tanta alegria, tantos parentes reunidos. No dia 26 a esperança já havia se esvaído e tudo voltou ao normal.

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Lúcia Martins - 24/10/2024 10h06
Tão perto e tão distante de nosso proceder, de nosso viver. Gostaria ter mais conhecimento desta realidade tão inadequada e deplorável.
LAURO RAPHAEL DUTRA - 24/10/2024 09h13
Este triste cenário é a "democracia" que o governo de criminosos querem para o povo, mas para os integrantes do governo de criminosos querem tudo de melhor com o dinheiro da corrupção e roubado dos cofres públicos