Foto da capa: Calles (ruas) do pequeno povoado de Guanábana, Matanzas - Cuba (cuba como ela é) - Crédito: Wesley Fragas

O dia 25 de Novembro de 2016 foi um dia normal em Cuba. Das quatro viagens que fiz ao país pensei que este dia seria o mais marcante da minha vida, talvez um dia histórico, afinal foi o dia em que o ditador Fidel Castro faleceu. E eu estava lá, muita sorte a minha. Estava em minha segunda viagem ao país, em Matanzas, perto da capital, uma cidade de cerca de 60.000 habitantes, pobre, feia e suja como toda cidade cubana. No dia anterior à noite, em um dos 4 canais disponíveis para os cubanos (todos estatais) já se sabia que ele estava batendo as botas.


No dia da morte do ditador, logo cedo, acordei e fui dar uma volta caminhando pelo bairro distante de Guanábana, um pequeno povoado de não mais que 2500 pessoas, a cerca de 7 quilômetros de Matanzas. Eu já tinha ido a Cuba no ano anterior e sabia que não haveria muita comoção, mas pensei em checar com os locais do bairro, conversar com algum idoso, algum fofoqueiro no único buteco sempre aberto do bairro (que só vende ron e cerveja), bem na entrada, esquina já com “la carretera central”.


Pequena Lojinha (tienda) de artigos de primeira necessidade em Guanábana.


Andando devagar, olhando as construções corroídas, as pessoas na rua, queria ver as expressões, sentir o clima, saber o que eles de verdade pensaram sobre a morte do Fidel. Passei em frente da “tienda”, ou ponto de distribuição de alimentos, local onde os cubanos vão retirar a pequena quantidade de alimentos distribuída pelo governo e controlada por uma caderneta. Mal dá pra uma semana. Só tinha arroz naquele dia, informação que me deu uma conhecida que trabalha para o governo. 


Nada de novo! Continuei pelas ruas tentando conversar com qualquer cubano que já sabia que eu estava no bairro. Como assim? você deve estar se perguntando. É muito normal em Cuba todos saberem que você é o único estrangeiro em um povoado comum, só de cubanos, onde nenhum turista jamais vai. O pastor logo me avistou e me fez um sinal com a cabeça. Havia uma pequena Igreja evangélica no bairro, que também era a casa do próprio pastor.


Explicando melhor a minha conhecida presença:

Em todo quarteirão, de todos os bairros em Cuba, há sempre um filiado ao PCC, que serve basicamente de “fofoqueiro”. A função dele é ouvir e depois contar tudo ao diretório central na cidade mais próxima. No relatório dele consta de tudo: estrangeiro no bairro, cubano que recebeu dinheiro de algum parente e comprou algum bem incompatível com a renda, fulano andou falando mal do governo, ciclano não está indo trabalhar porque ficou bebendo, outro foi viajar, a neta de outro chegou do exterior, o pastor do bairro está ajudando as mães cuidando das crianças para que a mesma faça um trabalhos por fora, venda de contrabando em geral. Enfim, o fofoqueiro é o cubano mais odiado do bairro. Em 2016, pasmem, o fofoqueiro de Guanábana era um dos únicos que tinha telefone fixo em casa. Pouquíssimas pessoas tinham smartphones. Em prosa de pouco mais de 20 minutos, o subornei com 10 dólares para ele aliviar o meu lado.


Moeda usada pelos turistas (CUC ou peso convertible) que já não existe mais. Equivalia na época o valor de U$ 1 dólar

Voltando ao pastor, entrei sorrateiramente e fomos para os fundos tomar um café passado. Não há ninguém mais que odeia tanto o regime comunista cubano quanto os pastores das igrejas em Cuba. Logo pensei que a opinião do pastor não seria a mais adequada, nem a mais imparcial. Mas, como todo bom curioso, eu queria saber as lamúrias do Pastor. Pensei que ele ia largar um “no joda” (“não me fode” em português), logo de cara, mas ele é religioso e se conteve nos palavrões. 


Na medida que o café terrível ia descendo (O café consumido pelos cubanos é da mais baixa qualidade possível, por questões econômicas é claro), o pastor foi se abrindo, contanto as mesmas histórias de perseguição que eu já sabia, para por último me dizer que “ninguém estava nem aí para a morte do barbudo”, afirmação esta que umas 5 horas depois eu ia ter diversas confirmações. O pastor não estava mentindo. A televisão estatal ficou o dia inteiro falando do líder e libertador do povo, do mais amado, um documentário completo, daqueles que dão vontade de vomitar de tanta mentira. 


O pastor me pediu permissão para desligar a televisão velha. - Com certeza disse eu. “No joda”. eu podia falar palavrão. O pastor é um tipo cordial, educado, estudioso da palavra de Deus, mas com a língua solta. Era tudo que eu queria. Eu já o tinha conhecido um ano antes. Ele me enviava e-mails de Cuba, me contava todas as “fofocas” em primeira mão. Cada e-mail tinha no mínimo 4 folhas de A4. Eu sabia tudo de Cuba sem estar em Cuba.


Mas ele era um inimigo do PCC (Partido Comunista Cubano), eu não sabia e não podia confirmar todas as lamúrias. Eu lia os e-mails, interpretava e guardava as conclusões para mim. Contei para algumas pessoas restritas ao meu círculo de amizades no Brasil, mas tentei não falar muito sobre Cuba com meus amigos. Cuba é uma nostalgia boa, um lugar incrível, um povo amável, pessoas maravilhosas, mas o comunismo deixou as pessoas inertes, sem esperança, assunto que eu somente conversava em círculos mais íntimos de amigos cubanos. Pessoas ligadas a minha ex-esposa cubana e alguns conhecidos do bairro. Alguns conheci na rua, na praia, nas vielas, nos botecos tomando ron (o ron cubano é muito bom, de verdade).


Uma confirmação: O nosso melhor ron, não chega nem aos pés do pior ron comprado em qualquer bodega de Cuba.


Depois da prosa afiada com o pastor, estava louco para ir até a cidade, saber mais sobre a morte de Fidel Castro, ver se havia concentrações de pessoas lamentando a morte do ditador. Fui até a rodovia de acesso (la carretera central) e fiz como todo cubano, tentei pegar carona ou buscar um caminhão com assentos de madeira na carroceria que servia de transporte público. Precavido, eu já tinha trocado meus CUC´s por peso cubano.


O CUC já não existe mais, era a moeda cubana para os estrangeiros (equivale a U$ 1 dólar). Mas, como todo bom brasileiro, me inteirei que era a moeda dos “otários”, era como se tivesse inscrito na sua testa a palavra “estrangeiro”. Logicamente tudo ficava mais caro. Logo aprendi que teria que trocar por peso cubano, tarefa das mais fáceis. Todo mundo queria o tal do CUC. E eu querendo me livrar!


A nota de 3 Pesos Cubanos não vale nada em Cuba, mas vale muito no exterior para os colecionares pela raridade e pela foto de "Che Guevara" estampada. A máquina de propaganda do governo funciona bem.


Cheguei no centro de Matanzas, sentei numa praça e comecei a olhar o movimento. Que nostalgia, congelado nos anos 50, aqueles carros antigos passando. Ninguém parecia preocupado. Um senhor de meia idade estava sentado no segundo degrau da entrada de um destes cortiços da década de 40 com o jornal diário Granma (jornal oficial do PCC) em mãos. Descaradamente eu lhe perguntei se ele  ia ler mais alguma coisa, se podia me emprestar um pouquinho. Ele me olhou e me deu o jornal com total desprezo para aquele periódico. Senti aquele ar de total desinteresse do cubano pelas notícias. Era um favor que eu estava fazendo para ele levar aquela “cartilha de doutrinação". No fundo ele deve ter pensando - tomara que ele leve este jornal e mostre para todo mundo no país dele.” Eu trouxe o jornal para o Brasil e mais uns 4 outros “jornalecos” comunistas, geralmente imprimidos por algum Sindicato cujos nomes geralmente  terminam com “trabalhadores”.  


Para saber mais sobre o Jornal Oficial Comunista de Cuba, basta acessar o site do Granma.


Naquele dia eu estava realmente feliz, estava sozinho, ninguém me interpelava, estava vestido com bermuda, camisa e um chinelo velho como todo cubano. Coloquei um boné da equipe de Beisebol local  “Los Cocodrilos”. Cuidei inclusive para pôr uma camisa de gola, manga curta branca, no mesmo estilo das camisas usadas pelos cubanos. Que sensação boa. Peguei um café numa pequena “tienda”, verifiquei no meu bolso os pesos disponíveis, pois estava catando as notas de 3 pesos, pois estas tem a foto do Che Guevara. Não era pelo “Che”, elas valem uma fortuna no exterior. Uma nota muito buscada por colecionadores. Guardei a única que tinha misturada com as outras, raridade que não tive a sorte de encontrá-la mais naquela viagem. Na verdade comprei outras 4 notas desta por 10 dólares de um cambista no centro da cidade.


A televisão mostrava uma multidão na praça da revolução em Havana (Multidão de partidários). Eu não sabia interpretar a sensação. Olhei uma “bodega” que vendia ron e cerveja, vi que tinha uma televisão ligada e uns cubanos falando em voz baixa. Pedi uma cerveja, sentei e tentei não parecer brasileiro. Nesta altura meu espanhol já era razoável, mas era só abrir a boca que o sotaque me entregaria. É claro que eu não aguentei, puxei conversa, senti receptividade e fui entrando no mundo cubano. O assunto era sobre o jogo do outro dia entre “Los Cocodrilos” contra Santa Clara pelo Campeonato Nacional de Beisebol. Aliás a história deste jogo que tive o prazer de ir presencialmente, contarei em outro momento.


Estádio Victoria de Giron (Beisebol) em Matanzas, herança americana que os cubanos continuam gostando muito, inclusive o Beisebol é o esporte número 1 em Cuba. Casa de Los cocodrilos.


Descaradamente perguntei sobre Fidel, o que aconteceria agora? O cubano me olhou com aquela cara de desdém e já foi soltando o verbo contra o ditador. Falou tudo que eu viria a escutar até pegar meu voo de volta 10 dias depois. Nada ia mudar, o partido ia apenas substituir o cabeça e tudo ia ficar igual. Não tinha o que falar muito, a estrutura do partido e o modelo de Estado estavam e iriam ficar do mesmo jeito. E realmente nada mudou. Quem viu o que passou e hoje acompanha o mínimo sobre Cuba, sabe que nada de verdade mudou, só piorou. Fiquei mais umas 2 horas naquela bodega, com uma prainha linda na frente, bebi duas garrafas de Havana Club com os cubanos e ficamos falando de beisebol. Ali, me convenceram de ir ao jogo no outro dia. Minhas gírias cubanas melhoraram consideravelmente na companhia daqueles impávidos beberrões.


Não adiantou eu falar que não entendia nada de beisebol, saí dali convencido e “borracho”. Demorei para pegar uma condução para voltar a Guanábana, tudo é difícil em Cuba. Mas tudo se resolve com dinheiro e ron. Munido de mais duas garrafas na mochila, uma serviu pra comprar uma carona pela “carretera central” até a casa em que eu estava. De noite, mais propaganda do partido, mas Fidel, mas Camilo, mais Che Guevara. Antes de dormir, ainda escutei Raul Castro falando em rede nacional. 


Nada de novo, só aquela propaganda de sempre, as boinas, os imperialistas, Sierra Maestra, o embargo, as mentiras e um resumo da vida de Fidel Castro. Só eu estava na frente da televisão, os cubanos já estavam dormindo. Ninguém aguentava mais aquele discurso. Lembrei do livro do Canek Guevara. Era apenas um disco riscado. Me dei conta que ninguém se importava com a morte “del comandante en Jefe”.


Tudo era como na ficção do livro 33 Revoluções do neto do Che: 


“Ele se senta ao balcão, pede um rum (em português é rum), acende um cigarro e divaga consigo: o universo é um disco riscado sem relatividade quântica nenhuma, cheio de ranhuras, onde transcorre a vida de poeira cósmica, gordura industrial e asfalto cotidiano, pensa. Dá um gole, faz barulho com a garganta e inclina a cabeça, com asco e gratidão.

O rum é a esperança do povo, pensa.” (CANEK GUEVARA, p. 22).


No dia seguinte, acordei, busquei a mesma condução com bancos de madeira rumo ao Reparto de Peñas Altas, local onde eu buscaria uma “buceta” (em espanhol de Cuba, um ônibus) pela Via Blanca para chegar a linda praia de Varadero. Para contar esta história, precisamos nos encontrar novamente, em outro conto. Até breve!


Adendo: Este é o início da série sobre minhas histórias em Cuba, país que estive em quatro oportunidades, de 2015 a 2019. Pretendo contá-las em pequenos pedaços como este. Até a próxima!


Wesley Fragas

Jornalista e escritor


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Lúcia (Malu) Martins - 09/08/2024 13h37
Muito Legal! Gosto muito de conhecer outros países, costumes, culturas de seus povos. Amei.