Colunistas
05/07/2024 10H00
Colunista: Dr. Sérgio Luiz coelho
A comissão de juristas encarregada pelo Senado de elaborar um anteprojeto de lei para reforma do Código Civil entregou ao presidente Rodrigo Pacheco o resultado do seu trabalho, para a oportuna e percuciente análise do Poder Legislativo quanto à sua conveniência e juridicidade.
Buscando o de aprimoramento e
simplificação das regras atinentes à sucessão hereditária, a partir de
pesquisas realizadas perante a sociedade civil, a comunidade jurídica, a
jurisprudência, os enunciados das Jornadas promovidas pelo Conselho da Justiça
Federal e as experiências legislativas de outros países.
Nessa perspectiva, um dos
primeiros temas tratados no texto proposto diz respeito aos direitos
sucessórios de cônjuges e companheiros.
A maior preocupação, nessa
matéria, foi a de atender às demandas da comunidade, para solução ou prevenção
de conflitos, que conturbam a vida das famílias e atrasam a tramitação dos
inventários, e, por isso, a sugestão para afastar a condição de herdeiro necessário
(artigo 1.845) e, também, o direito de concorrência sucessória (artigo 1.829, I
e II) de cônjuges e companheiros com descendentes e ascendentes, principalmente
quando o casamento ou a união estável estivessem submetidos ao regime de
separação convencional de bens, alvo de grande rejeição da população em geral.
Ninguém entendia que a escolha do
casal pelo regime de incomunicabilidade de bens não se estenderia para após a
morte, muito menos se compreendia a lógica do legislador em assegurar a
concorrência justamente sobre os bens particulares, em relação aos quais o
viúvo ou a viúva nada contribuíram.
O anteprojeto encaminhado ao
Senado corrige distorções do Código Civil de 2002, que havia promovido o
cônjuge ao posto de principal personagem da sucessão hereditária, restaurando o
equilíbrio entre os herdeiros legítimos, chamados a suceder de acordo com a sua
classificação na ordem da vocação hereditária.
O cônjuge, nos termos da
proposição legislativa, passa a ser herdeiro exclusivamente da terceira classe
e só recolherá a herança, no âmbito da sucessão legítima, na ausência de
descendentes (herdeiros de primeira classe) e de ascendentes (herdeiros de segunda
classe), afastando-se o direito concorrencial, que tantos problemas ocasionou
nessas últimas duas décadas. Além disso, cônjuges e companheiros passam a ser
herdeiros facultativos, o que implica a possibilidade de serem excluídos da
sucessão por ato voluntário do testador.
Há quem diga que foi “criada a
figura de um ‘mini cônjuge’, sem direitos, salvo se inexistirem descendentes e
ascendentes” e que “tal sistema não contribuirá para o alcance da igualdade de
gênero e, por consequência, da igualdade social, norte que deve permear toda e
qualquer alteração legislativa.
Lembre-se que, até 1977, o casamento
era indissolúvel no Brasil. Nesse cenário, os privilégios sucessórios
atribuídos ao cônjuge sobrevivente (viúvo ou viúva) eram justificados e
imperiosos, pois entre os integrantes da família nuclear, era o consorte aquele
que ficava ao lado do outro até a hora da morte, não obstante, em muitos casos,
mesmo que o vínculo de afetividade que orienta a ordem da vocação sucessória
sequer existisse.
Os relacionamentos conjugais se
sucedem e se multiplicam com diferentes parceiros, e aquele que tiver a sorte
de ocupar a posição de cônjuge ou convivente ao tempo da abertura da sucessão,
pouco importando o tempo de conjugalidade, se tornará o grande premiado, em
detrimento dos próprios filhos do autor da herança. Salta aos olhos a injustiça desse paradigma.
A isonomia entre homem e mulher,
nos relacionamentos conjugais, vem sendo alcançada, ora pela sua crescente
autonomia e independência profissionais, ora pelas regras que regem o
patrimônio familiar (regime de bens), a privilegiar, sempre, a presunção de comunhão.
Esse é o contexto hodierno nas
grandes cidades, marcado, simultaneamente, pela expansão das famílias
recompostas e pelo crescente empoderamento feminino. A reforma do Código Civil
foi concebida e pensada sob essas premissas.
Nessa conjuntura, o
reposicionamento sucessório de cônjuges e companheiros, em benefício de
descendentes e ascendentes, pari passu
com uma maior autonomia privada atribuída ao autor da sucessão, mostra-se
conveniente e contemporâneo com as novas realidades da família brasileira.
Acrescente-se que ao anteprojeto
não se pode imputar o estigma de reduzir direitos de cônjuges e companheiros,
pois se o texto projetado, por um lado, requalificou a vocação sucessória
decorrente da conjugalidade, de outro, concedeu àqueles sujeitos outros
direitos não previstos no CC/2002.
A começar pelo usufruto sobre
determinados bens da herança (legado ex
lege), instituído para garantir a subsistência do cônjuge ou convivente
sobrevivente que comprovar insuficiência de recursos ou de patrimônio, previsto
no § 1º do art. 1.850 e que se somará ao direito real de habitação.
Ainda que o pressuposto
“insuficiência de recursos ou de patrimônio” caracterize um conceito jurídico
indeterminado, o seu adequado preenchimento pelo operador do Direito
possibilitará uma proteção ao viúvo ou à viúva, “conforme o caso concreto”, e
sem limitação a uma parcela do patrimônio, como ocorria com o usufruto vidual
do CC/1916. Propositadamente se optou por não restringir o objeto do usufruto,
que recairá sobre tantos bens quantos bastem para subsidiar a subsistência
digna ao supérstite economicamente vulnerável.
A proteção sucessória de cônjuges
e conviventes é complementada pelas propostas apresentadas na disciplina dos
regimes de bens, locus mais
apropriado à inserção de medidas de combate à desigualdade de gênero, pois
enfeixam regras que disciplinam as relações patrimoniais do casal durante a
vida, período em que as assimetrias se manifestam e precisam ser suprimidas e
equalizadas.
É o caso dos artigos que regulam a
fixação de alimentos compensatórios, os quais também se prestarão para corrigir
distorções materiais em caso de dissolução da sociedade conjugal por morte.
No regramento da comunhão parcial
de bens, foi prevista a comunicação da valorização das quotas ou das
participações societárias ocorrida na constância do casamento ou da união
estável, ainda que a aquisição das quotas ou das ações tenha ocorrido anteriormente
ao início da convivência do casal, incluindo as situações em que a valorização
decorre de lucros reinvestidos, atualmente considerada incomunicável de acordo
com precedentes do STJ. Considerando que na maioria das famílias, o homem é o
titular da empresa, a medida proporcionará inegável benefício patrimonial à
mulher.
E,
até mesmo no regime de separação total de bens, foi prevista a partilha
de bens havidos por ambos os cônjuges ou conviventes com a contribuição
econômica direta de ambos, respeitada a sua proporcionalidade, além de uma
compensação econômica pelo trabalho realizado na residência da família e os
cuidados com a prole, a ser fixada pelo juiz, na falta de acordo, tudo isso a
ratificar e corroborar a preocupação em
proteger e valorizar o trabalho feminino dentro de casa, o que se convencionou
chamar de “dupla jornada da mulher”.
Diversas outras proposições reforçam essa ideia, a permear todo o livro
do Direito de Família.
Em conclusão, as mudanças
efetivadas na sucessão de cônjuges e companheiros, muito longe de instituir as
figuras de um “mini cônjuge” ou de um “mini convivente”, desfalcado de direitos
sucessórios, promove a requalificação desses sujeitos em consonância com o
corrente patamar evolutivo da sociedade brasileira, conferindo-lhes outros
direitos, privilégios e prerrogativas, especialmente na seara do Direito de
Família, hábeis a combater a desigualdade de gênero.