Um céu estrelado, visível apenas em áreas afastadas das luzes urbanas, forma o cenário para o som de um maracá, um chocalho indígena. O ritmo do instrumento é acompanhado por cantos na língua krahô, celebrando as cores das flores. Assim começa "A Flor do Buriti", filme premiado no Festival de Cannes, na França, que estreia nesta quinta-feira (4) nos cinemas brasileiros.


“Quando o Hyjnõ sacode aquele maracá, como diz o antropólogo Viveiros de Castro, é um acelerador de partículas. Eu acho que a partir disso abrem-se muitas possibilidades”, reflete a codiretora Renée Nader Messora. A frase do renomado antropólogo compara o papel do xamanismo nas sociedades indígenas à ciência nas culturas ocidentais.


O maracá de Francisco Hyjnõ Krahô foi ouvido no Cinema Claude Debussy, um dos mais importantes festivais dedicados à sétima arte. Ali, o elenco, formado essencialmente por atores indígenas de comunidades krahô do norte de Tocantins, foi premiado.


“Você tem um cinema como Debussy, cheio de gente, e aí no palco você tem membros de uma comunidade indígena do norte do Brasil falando a sua própria língua, falada por 4 mil habitantes”, descreve Renée, destacando a importância da exibição em Cannes.


"A Flor do Buriti" foi filmado ao longo de 15 meses, apoiado no trabalho de formação que os diretores João Salaviza e Renée Nader Messora desenvolveram nos territórios krahô. “A gente começou primeiro a trabalhar com o audiovisual como ferramenta. A comunidade estava muito curiosa e querendo aprender cinema, fotografia, edição”, conta Renée sobre o processo, que já rendeu o longa-metragem "Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos", lançado em 2018.


Massacre e milícia


Neste filme, os indígenas encenam dois momentos históricos marcantes para a comunidade: um massacre ocorrido em 1940 e o recrutamento de jovens, em 1969, para integrarem uma milícia indígena formada pela ditadura militar. As lembranças contextualizam a situação atual dos krahô, que lutam por espaço na política e para livrar suas terras de invasores, fazendeiros e traficantes de animais silvestres.


“O ponto de partida, a chispa inicial, foi essa vontade que a gente tinha de trazer a história do massacre. Era uma vontade desde o 'Chuva é Cantoria', que foi filmado em 2015 e 2016”, conta a diretora sobre como o projeto surgiu. No meio do caminho, as batalhas cotidianas da comunidade trouxeram elementos para a construção do novo filme.


“Um pouco mais tarde, o Francisco Hyjnõ, que é um outro protagonista do 'Flor do Buriti', estava muito envolvido num processo de roubo de terra em uma fronteira da área indígena. Ele já tinha feito a denúncia para a Funai, já tinha conseguido um drone para capturar imagens aéreas e utilizar essas imagens como prova. Essas imagens terminaram também por entrar no nosso filme”, detalha Renée sobre a construção do longa.


Narrativas


Com indígenas integrando a equipe de roteiro, o filme mistura visões de mundo e formas de contar histórias. “O filme tenta abrir isso [outras maneiras de contar histórias], não tem mais um protagonista único, são vários protagonistas. E tem essa maneira de contar onde as temporalidades vão se misturando, vão tentando criar uma nova forma. Quanto mais a gente dialoga e passa tempo junto com a comunidade, mais essa forma vai entrando na nossa forma de fazer filme”, diz a diretora sobre a imersão na cultura krahô.


As narrativas indígenas podem parecer complexas para pessoas não habituadas, mas abrem mais possibilidades de acolher a pluralidade de pontos de vista. “Uma forma muito mais aberta, que contempla muitos olhares também. Às vezes o mito está sendo contado a partir da perspectiva de uma pessoa humana, mas por momentos o mito passa a ser contado a partir da perspectiva de um animal. A pessoa que escuta e que não está muito treinada vai se perdendo nessa multiplicidade. Aqui a gente queria trazer um pouquinho dessa sensação.”

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