Colunista: Dr. Sérgio Luiz coelho


A comissão de juristas encarregada pelo Senado de elaborar um anteprojeto de lei para reforma do Código Civil entregou ao presidente Rodrigo Pacheco o resultado do seu trabalho, para a oportuna e percuciente análise do Poder Legislativo quanto à sua conveniência e juridicidade.

Buscando o de aprimoramento e simplificação das regras atinentes à sucessão hereditária, a partir de pesquisas realizadas perante a sociedade civil, a comunidade jurídica, a jurisprudência, os enunciados das Jornadas promovidas pelo Conselho da Justiça Federal e as experiências legislativas de outros países.

Nessa perspectiva, um dos primeiros temas tratados no texto proposto diz respeito aos direitos sucessórios de cônjuges e companheiros.

A maior preocupação, nessa matéria, foi a de atender às demandas da comunidade, para solução ou prevenção de conflitos, que conturbam a vida das famílias e atrasam a tramitação dos inventários, e, por isso, a sugestão para afastar a condição de herdeiro necessário (artigo 1.845) e, também, o direito de concorrência sucessória (artigo 1.829, I e II) de cônjuges e companheiros com descendentes e ascendentes, principalmente quando o casamento ou a união estável estivessem submetidos ao regime de separação convencional de bens, alvo de grande rejeição da população em geral.

Ninguém entendia que a escolha do casal pelo regime de incomunicabilidade de bens não se estenderia para após a morte, muito menos se compreendia a lógica do legislador em assegurar a concorrência justamente sobre os bens particulares, em relação aos quais o viúvo ou a viúva nada contribuíram.

O anteprojeto encaminhado ao Senado corrige distorções do Código Civil de 2002, que havia promovido o cônjuge ao posto de principal personagem da sucessão hereditária, restaurando o equilíbrio entre os herdeiros legítimos, chamados a suceder de acordo com a sua classificação na ordem da vocação hereditária.

O cônjuge, nos termos da proposição legislativa, passa a ser herdeiro exclusivamente da terceira classe e só recolherá a herança, no âmbito da sucessão legítima, na ausência de descendentes (herdeiros de primeira classe) e de ascendentes (herdeiros de segunda classe), afastando-se o direito concorrencial, que tantos problemas ocasionou nessas últimas duas décadas. Além disso, cônjuges e companheiros passam a ser herdeiros facultativos, o que implica a possibilidade de serem excluídos da sucessão por ato voluntário do testador.

Há quem diga que foi “criada a figura de um ‘mini cônjuge’, sem direitos, salvo se inexistirem descendentes e ascendentes” e que “tal sistema não contribuirá para o alcance da igualdade de gênero e, por consequência, da igualdade social, norte que deve permear toda e qualquer alteração legislativa.

Lembre-se que, até 1977, o casamento era indissolúvel no Brasil. Nesse cenário, os privilégios sucessórios atribuídos ao cônjuge sobrevivente (viúvo ou viúva) eram justificados e imperiosos, pois entre os integrantes da família nuclear, era o consorte aquele que ficava ao lado do outro até a hora da morte, não obstante, em muitos casos, mesmo que o vínculo de afetividade que orienta a ordem da vocação sucessória sequer existisse.

Os relacionamentos conjugais se sucedem e se multiplicam com diferentes parceiros, e aquele que tiver a sorte de ocupar a posição de cônjuge ou convivente ao tempo da abertura da sucessão, pouco importando o tempo de conjugalidade, se tornará o grande premiado, em detrimento dos próprios filhos do autor da herança.  Salta aos olhos a injustiça desse paradigma.
A isonomia entre homem e mulher, nos relacionamentos conjugais, vem sendo alcançada, ora pela sua crescente autonomia e independência profissionais, ora pelas regras que regem o patrimônio familiar (regime de bens), a privilegiar, sempre, a presunção de comunhão.

Esse é o contexto hodierno nas grandes cidades, marcado, simultaneamente, pela expansão das famílias recompostas e pelo crescente empoderamento feminino. A reforma do Código Civil foi concebida e pensada sob essas premissas.

Nessa conjuntura, o reposicionamento sucessório de cônjuges e companheiros, em benefício de descendentes e ascendentes, pari passu com uma maior autonomia privada atribuída ao autor da sucessão, mostra-se conveniente e contemporâneo com as novas realidades da família brasileira.

Acrescente-se que ao anteprojeto não se pode imputar o estigma de reduzir direitos de cônjuges e companheiros, pois se o texto projetado, por um lado, requalificou a vocação sucessória decorrente da conjugalidade, de outro, concedeu àqueles sujeitos outros direitos não previstos no CC/2002.

A começar pelo usufruto sobre determinados bens da herança (legado ex lege), instituído para garantir a subsistência do cônjuge ou convivente sobrevivente que comprovar insuficiência de recursos ou de patrimônio, previsto no § 1º do art. 1.850 e que se somará ao direito real de habitação.

Ainda que o pressuposto “insuficiência de recursos ou de patrimônio” caracterize um conceito jurídico indeterminado, o seu adequado preenchimento pelo operador do Direito possibilitará uma proteção ao viúvo ou à viúva, “conforme o caso concreto”, e sem limitação a uma parcela do patrimônio, como ocorria com o usufruto vidual do CC/1916. Propositadamente se optou por não restringir o objeto do usufruto, que recairá sobre tantos bens quantos bastem para subsidiar a subsistência digna ao supérstite economicamente vulnerável.

A proteção sucessória de cônjuges e conviventes é complementada pelas propostas apresentadas na disciplina dos regimes de bens, locus mais apropriado à inserção de medidas de combate à desigualdade de gênero, pois enfeixam regras que disciplinam as relações patrimoniais do casal durante a vida, período em que as assimetrias se manifestam e precisam ser suprimidas e equalizadas.

É o caso dos artigos que regulam a fixação de alimentos compensatórios, os quais também se prestarão para corrigir distorções materiais em caso de dissolução da sociedade conjugal por morte.

No regramento da comunhão parcial de bens, foi prevista a comunicação da valorização das quotas ou das participações societárias ocorrida na constância do casamento ou da união estável, ainda que a aquisição das quotas ou das ações tenha ocorrido anteriormente ao início da convivência do casal, incluindo as situações em que a valorização decorre de lucros reinvestidos, atualmente considerada incomunicável de acordo com precedentes do STJ. Considerando que na maioria das famílias, o homem é o titular da empresa, a medida proporcionará inegável benefício patrimonial à mulher.

E,  até mesmo no regime de separação total de bens, foi prevista a partilha de bens havidos por ambos os cônjuges ou conviventes com a contribuição econômica direta de ambos, respeitada a sua proporcionalidade, além de uma compensação econômica pelo trabalho realizado na residência da família e os cuidados com a prole, a ser fixada pelo juiz, na falta de acordo, tudo isso a ratificar e corroborar a  preocupação em proteger e valorizar o trabalho feminino dentro de casa, o que se convencionou chamar de “dupla jornada da mulher”.  Diversas outras proposições reforçam essa ideia, a permear todo o livro do Direito de Família.

Em conclusão, as mudanças efetivadas na sucessão de cônjuges e companheiros, muito longe de instituir as figuras de um “mini cônjuge” ou de um “mini convivente”, desfalcado de direitos sucessórios, promove a requalificação desses sujeitos em consonância com o corrente patamar evolutivo da sociedade brasileira, conferindo-lhes outros direitos, privilégios e prerrogativas, especialmente na seara do Direito de Família, hábeis a combater a desigualdade de gênero.

Deixe seu Comentário